
Odeio este corredor metódico. Ímpar e par, ímpar e par distinguem as portas coladas umas nas outras, separando vidas, comportamento e histórias. Aliás, história é o que não deve faltar para esta velha aqui do lado, ela vive do passado, toda noite ela chora. Quando o sino bate pela última vez, começa o pranto urra e geme feito louca, esta velha barulhenta.
No caminho até a venda, não pensei em outra coisa senão na moça da venda. Um apreço de mulher, sempre que me vê esboça um sorriso – No que posso ajudar? Tão prestativa esta moça. Nunca foi tão prazeroso comprar cigarros, às vezes, só às vezes me pego olhando para os seios dela, porque quase sempre noto a presença dos lábios carnudos, disfarçados sob o efeito de um batom claro e morno. Ah se ela soubesse..
- No que posso ajudar?
- Um maço de cigarros, o mais barato!
Esse vício eu herdei de papai, amargura em pessoa. Era um horror quando sorria, os dentes podres e amarelados, sempre bêbado pelos cantos. Papai se foi, mas deixou marcas, pelo corpo de mamãe.
Estou me sentindo tão solitário, faz tanto tempo que não entram em minha casa, que não entram em minha vida. Aqui na rua brinca um garotinho tão serelepe, apronta com todos, ele me chama atenção, é diferente dos outros assim como eu. Ele precisa de alguém para dizer as coisas certas para ele. Acho que posso fazer isso.
- Tenho uma coisa para você.
- O que é? – perguntou ele com um olhar tão curioso.
A brincadeira dele perdeu a graça, eu sabia, eu podia fazer isso por ele.
- Venha comigo, eu vou te mostrar.
- Eu não quero! – disse pedante.
Ah como são ingênuas as crianças, tolas, tolas! Acho que foi minha aparência que não o agradou muito. Ele deveria saber, o que importa é o que está por dentro, mas eu sei, tem muitas coisas que ele não sabe. É tão necessário. Ás vezes as coisas tem de ser feitas à força, só às vezes, quase sempre eu consigo convencer.
- Venha! – fui obrigado a puxá-lo pelos frágeis braços.
- Me solta! Me solta! – não gritou mais do que duas vezes, tapei a boca dele e o arrastei até a entrada do prédio.
Não era preciso nada disto, mas esta criança sem modos deixou as coisas mais complicadas. Logo ele irá aprender as coisas certas, as coisas do meu jeito. Apaguei o cigarro na pequenina mão dele cuidadosamente. Algumas lágrimas escorreram, um sinal de que estávamos nos entendendo.
O coloquei sentado no sofá, deixei para ele meu lugar favorito, do quarto o espiei, estava tranqüilo observava atentamente minha mobília empoeirada, seu olhar tornou-se desperto quando avistou uma coleção de soldadinhos de chumbo. Ele estava se divertindo, não tanto quanto eu.
- Trouxe umas coisas para você, pode fazer o que quiser com elas.
- Eu não gosto das suas coisas, eu quero ir embora –disse ameaçando chorar.
- Mas eu gosto de você e da roupa que você está vestindo, quem foi que lhe deu?
- Minha madrinha!
- É mesmo? Você não gosta de nada que eu tenho? Essas coisas são para você!
Ele estava notavelmente mais calmo e entretido, toda criança tem uma curiosidade aguçada, e no caso dele estava superando o medo da situação.
- O que este palhaço faz? Porque ele está zangado? –disse me entregando um fantoche que eu havia deixado sobre o chão junto com outras coisas.
- Ele diz verdades!
- Ele fala? Como?
Coloquei a mão dentro do buraco do fantoche e o manuseei por um breve tempo
- Você pode fazer qualquer pergunta para ele! Vamos lá, tente! O nome dele é Dick.
- Dick?
- Sim..Vamos pergunte; -eu estava ansioso para saber o que estava na cabeça deste pobre menino
- Dick, vocês vão me machucar?
- Machucar você? O que você acha?
- Eu acho que sim..
- Você vai machucar a gente?
- Eu não..
- Então nós também não vamos machucar você, tenho uma música você quer ouvir?
- Quero..
- Tim trouxe você aqui,
ele quer te agradar,
você vai fazer o que ele quiser,
você vai sorrir.
não vai ser mais um garoto idiota.
Tim vai te ensinar coisas legais,
ele vai te ajudar, seja bonzinho.
Seja bonzinho,
não seja como as outras pessoas más,
não seja como o mundo.
O medo do pequenino exalava pela sala, eu respirei fundo e satisfeito. Tive uma boa idéia
- Agora é sua vez de ser Dick, o que acha? –entreguei o fantoche para ele.
Ele me fitou surpreso, mas não recusou a idéia. Dick me dirá todas as verdades.
-Olá Dick.
- Olá Tim, também tenho uma música para você.
Confesso que me surpreendi, ele estava entrando no jogo!
- Tim, Tim, Tim,
eu não gosto de você,
você é doente e sozinho,
Tim, Tim, Tim,
se eu pudesse te matar,
matava!
Não assuste mais o garoto,
e eu deixo você livre.
Eu caí na gargalhada e o menino no ímpeto também.
- Você é um menino muito bonito sabia?
- Eu não acho!
- Conhece a Dor? Pode mostrar o seu corpo para mim?
Ele correu assustado em direção a porta.
- Não quer mais brincar com as minhas coisas? –fui me aproximando em passos lentos com um sorriso estridente.
- Dick disse que você não me machucaria, por favor, por favor!
- Vamos continuar a nossa brincadeira -coloquei minhas mãos em volta do pescoço pálido dele, logo foi tomando cor, um tom rubro. – Cante para mim, a música de Dick de novo, Vamos Cante, Cante! –Ele mal podia respirar, eu apertava cada vez mais forte – Cante seu menino idiota, eu não estou ouvindo!
-Tim,Tim, Tim, eu não gosto de você –cantou o menino com dificuldade suas últimas palavras.
- Eu também não gosto de você !! – eu disse com vontade.
Coloquei o corpo desmaiado, do menino morto, no meu lugar favorito! Tirei as roupas dele, tão lindas roupas, e o embrulhei com o jornal do dia. O sino anuncia estonteante suas últimas badaladas do dia, hoje a velha não chorou.
Sentei no sofá e apreciei, trago a trago do meu maço barato. Eu me sinto tão sujo, não sei se sou eu ou este lugar.
Amanheceu a Segunda tão alegre, caminhei sem pressa até o banheiro. Olhei-me no espelho e sorri animado. Ás vezes eu me sinto desse modo, às vezes, quase sempre me sinto entediado, mas hoje não era domingo, ainda não. Tomei um café sem gosto e passei o resto do dia trabalhando. Um murmúrio de um menino chorão me deixou nervoso. Merda! Meus cigarros acabaram.